Wednesday, December 17, 2008

Não tenho, nem quero futuro nenhum, sou um cão de cheiro que se evadiu da forma, vejo as ruas como um talho, o instinto é ser assim, inacabado sempre.
Se o teu coração sangra eu lambo, se na tua língua uma pura fonte eu escrevo, o homem que foi para dentro, deu as mãos e recebeu o sorrir no fígado.

Tuesday, December 16, 2008

Azeite na água.

Quantas vezes a sacana daquela canção nos salvou a vida, ou pelo menos nos lembrou aquilo que gostaríamos de fazer dela, quantas vezes.
Um gajo anda por aí com uma tola vida de pássaro, que me perdoem os pássaros, os filhos e ninhos, muita dignidade tem no bico essa ordem de amor.
Fantasmas de nós, criaturas de roupa com nome no meio, para o equilíbrio do som que existe entre o corpo e a cabeça, entre o ventre e uma lápide, é aí que estamos, sós.
Cemitério de almas como o azeite na água.

Sunday, December 14, 2008

Tu e eu felizes de morte como uma fruta no estômago da árvore, sem passaporte mas cheios de amor nas ideias.

Wednesday, December 3, 2008

Até amanhã, vou-me deitar, beber um copo de leite para um charco branco no estômago e pronto, deito-me, não há lençóis, uma coberta que aquece passados uns minutos e ajoelho-me lá dentro com a cara na almofada.
Quantas horas tem o dia de amanhã, terá, sou uma árvore, dei por mim a ser uma árvore muito confusa na cama, desajeitados ramos, folhas secas nos braços esse meu ruído de querer morrer no sono.

Tuesday, December 2, 2008

Sal.

Não fosse o vinho tão pouco éramos amigos, como te subia à cabeça e inundava o coração, eu igual, trago a trago a vida a dizer que sim numa passadeira de frutos, as noites inteiras e o vinho a sossegar-nos, amanhã resolve-se.
Dois botões casados para o frio e um abraço de hálito quente, a rua entra nos passos, a esquina oferece um alívio, o resto é andar.
Amigos de fígado e corpo de bacalhau, demolhados os dois até ao fim do sal, sobre a mesa que estuda o defunto cairá o olho do peixe.

Monday, November 24, 2008

O maestro e o clister na tripa.

Pode o fumo pendurar um cadáver na varanda de enchidos que a memória estende,
o fundo negro desse teatro de carne, onde as personagens ensanguentadas engordam as tripas.

Existem dois ou três lugares onde sou feliz, e raramente lá vou, porque para mim ser feliz é estar triste nesses lugares.
Morri no dia em que os meus avós morreram, um logo atrás do outro, como se um ao pão, e outro ao vinho fossem, horas de almoço.
Aquela casa de janelas altas para o chão que tinha, três degraus e nasceu uma porta, por onde entram agora, mais largos, dois jovens professores a aprender uma aldeia.
O meu pai estacionava o primeiro dos modestos carros que possuiu, eu talvez nove anos, o meu irmão sete, a minha mãe trinta, a minha mãe já teve trinta anos, custa-me tanto acreditar nisso, tem muito a ver comigo, não acreditar nos trinta anos da minha mãe.
Hoje era capaz de um salto, filho da puta, sobre as tábuas, para ir ter com eles, porque sei que os mortos não incomodando, também não abandonam assim as cicatrizes da cal, embora o restauro nos queira dizer o contrário, sei que não abandonam.
Estão nas fundações da casa, com o nó dos dedos a conferir a contra força, que o pai da minha avó usou há quase dois séculos, para levantar aquilo há idade de hoje,
vigiam tudo, e são tristes em nós.
A minha casa é o meu ordenado, um sítio sem memória, masturbo-me e uso o forno eléctrico, para a fome que isso dá.
Não há tábuas, nem almas, apenas uma esquadria de apelo à solidão, e ao desejo de ter que em mim morreu, como um hóspede na sua estrangeira forma de ser íntimo consigo num quarto.
O meu avô usou uma algália que lhe observou a morte pela bexiga, eu vou a caminho desse fio de urina de deitar fora o mijo à mão, sem dar a força à terra que o meu avô dava.
Nas costas da casa, um canteiro de rosas brancas que morreram de saudades do mijo dele, talvez eu seja uma das rosas, solta pela memória de lhe ter cheirado o quarto.
Aqui estou, com a vontade de uma bexiga nascente, cercar a jacto a casa,
sonhar que as rosas voltariam por ti, em mim.
Caganitas de cabra, em vez de fezes, as da minha avó.
Quando se morre de velho, vamos desta vida a cagar muito pouco, os velhos que não se cagam todos pelo descuido da idade, alguns.
Ela lá sabia porque se viciou em clisteres, um atrás do outro, estranha romaria, à não menos bizarra casa de banho, fora de portas, na arribana fria.
Um espelho colado no cimento sobre o lava mãos, e uma solitária sanita com balde ao lado, servido da água pluvia do tanque, no tempo em que ainda chovia.
Eu maestro da chuva, pés sobre a cama no sótão da minha tia, a combinar com os braços o latido das telhas, eu de pijama degolado ao frio de ser hoje, eu a feliz tripa, um dia.

Thursday, November 20, 2008

As palavras subiram pela casa, hei-de lá chegar um dia, abrir a janela sem o rosto das mãos.

Wednesday, November 12, 2008

Aniversário de amigas

Flancos de flores, manicómios de banheira e um fio de água na rasteira fotografia da vulva.
Sai daí sacana, se me atraso na mesa falho a cadeira, perfumo o pescoço e amargo uma língua.

Wednesday, July 9, 2008

A cadeira.

Estava sentado junto à entrada da cozinha numa cadeira de plástico, inocente de verde, ainda mais clara, suficientemente longe da janela, da vida de uma janela, quadro de ombros que sobeja, sempre que para lá se olha, sobeja.
Uma perna ao lado da outra, juntas, calças de só ter joelhos por baixo, as pernas ainda, as duas, ao fundo os pés nus, dois pentes de pele e carne e ossos, penteando o chão da cozinha em cabelos suaves de nada.
Quando se tem tempo é assim, os dedos mexem-se numa irmandade descalça, ouvem-se uns rumores longínquos de perto e achamos que estão a brincar connosco, ainda brincam connosco, como na praia os miúdos desconhecidos de se conhecerem, brincam.

Nunca foi de milagres, a agilidade assim diz, como o cotovelo a meio do braço o dobra e estende. Um olhar para tudo, a erva que rompe da terra e se ouve na cozinha, a mesma maternidade.

Bateram à porta, não um nó de dedos, um fio verde com olhos de poeira, sem inicio depois da porta, cega de corpo, decidida de saber porque veio aguda de força, rastejando por entre os cabelos, acariciando os pés e congelando os pequenos ossos, subiu aos joelhos dividida de pressa, como um mergulho no mar foge da dor de um incêndio,
acometeu cintura ao corpo dividido, fez-se cadeira, verde, inocente, ainda mais clara,
a pele de onde não mais desceu.

Sunday, June 8, 2008

Eu gosto que Portugal ganhe, porque quando Portugal ganha o meu marido beija-me, passa as mãos pela cabeça dos miúdos, chama-me pequenina e eu gosto.
Já tem acontecido depois de um jogo desses, em que Portugal ganha, sairmos para comer amêijoas e ele beber mais umas cervejas, os miúdos divertem-se, usam-lhe o colo e ele fá-los rir, gosto tanto de os ver assim.
Tenho pena que a equipa não entre mais vezes em campo, com aquela gana de vencer,
eles que ganham tanto dinheiro, afinal de contas é só uma bolinha que terão de pôr lá dentro, soubessem da felicidade do meu marido e acredito que nunca mais perderiam um jogo.
São os carros na rua a cumprimentarem-se no trânsito, as palmadas nas costas dos que nem bom dia no elevador, as estátuas coloridas e os outros ainda mais pequeninos a correr, transpirados sobre a porta do café, os nomes dos jogadores em suor na testa.
Temos Carlos, temos, ainda chega para pedires mais uma, que te segure a boa disposição, depois saímos todos juntos, ele no meio, de braços grandes a segurar-nos,
uma selecção.

Wednesday, June 4, 2008

Os amigos doces

Os amigos doces viajam com as costas cobertas de pó, num comboio do qual a maioria se distraiu, calças coçadas pela terra e a pele ainda viva de atenção.
Os amigos doces sorriem para dentro uns dos outros, engolem e devolvem com a mesma disponibilidade o prazer de estar juntos, mãos nos cabelos, e os brincos delas a dançar candeeiros suaves nas orelhas.
Artur lava os olhos na luz de uma janela, molha os dedos na boca, ensaia as pestanas para o acerto que o coração lhes dá, frente e lado, todos dormem ainda o documento de sono que a felicidade abriu nos rostos, pode assim, uma vida congratular-se por ouvir um comboio, a alma de um comboio, como ferro feminino, joelho de uma perna a deslizar na erva, uma manhã que tinha tudo para nela se ter ficado.
As pestanas colaram-se, não lembra a ninguém dizem, transportar saliva para os olhos,
os joelhos não voltaram a tocar a erva, e o comboio não mais se ouviu.

Monday, May 19, 2008

Se eu te dissesse que todos os dias sangro e alguns dias regam flores.

Saturday, May 17, 2008

As pessoas são
o que dão umas às outras.

Wednesday, April 23, 2008

As flores.

As flores chegaram hoje
espera, tens de saber gostar delas passados nove dias.
As flores chegaram hoje, sorri e ama quem as trouxe,
nove dias, nove meses, nove anos, nove vidas, menos oito
menos tu, menos quem as trouxe
as flores chegaram hoje.
Se o comboio fosse mais lento e o mundo um lugar de maior reverberação, acho que conseguia de cada som fazer uma canção.

Tuesday, April 8, 2008

Encontrei alguém que não tinha para com a vida um compromisso de ombros.

Monday, March 31, 2008

Rural magro, o pássaro

Dinis a sala é grande, sujeita-te, abre os olhos e limpa o espaço, não imaginas as coisas que nos passam pela cabeça, mulheres nós sabemos como as telhas de um telhado, o sol quando quer descobre-as, envia um raio de luz e assenta na mesa um queijo puído de bonito, um copo de vinho tinto e ainda se puder ser, os lábios mais amargos desse fim de tarde no mundo rural magro.
Tens de comer Dinis, tens de te alimentar, uma mulher virá um dia, quem sabe mais logo pela mortinha de hoje, quem sabe.
Debaixo do feno está um pássaro, garanto-te que está, é pequeno e de cor também pequenina, discreto como o amor de um tímido, masturbando-se junto do tanque na oficina de sapatos, raio de sítio rapaz, um gajo nunca saber o sexo dos atacadores, que raio se sitio rapaz.
Na serra dorme-se bem, dentro de um carro, vidros abertos e o alecrim a virar-se para nós, Júlia nunca mo tinham beijado assim, garanto-te que não, um caralhão destes há muito não vira, pobre do pássaro sai daí, que violência usar vidros num país sem janelas, feno e velas num desejo a Verão adolescendo, tinhas quinze anos Júlia, meias rijas e cuecas lá dentro, nunca lhes perdi o cheiro, o suor que na palha canta um pequeno galho, eu Júlia e o meu caralho feliz dentro do palheiro.
São os anos a carregar sobre o sangue de ontem, a tentar um lugar na terra, uma pedra, uma raiz nunca a descoberto por ser de água, o nosso nome nunca perguntado para que serve, soar um túnel, o nome é mesmo um túnel, e só isso, sem gente nesse lugar de céu aberto como um coração infinitamente azul, onde um pássaro cresceu para ser noite.

Tuesday, March 11, 2008

Deixa-me ser exagerado, aproveitar hoje que estou ansioso por acreditar em tudo.
Nós somos bonitos, nós que respiramos, subimos e descemos pelas pernas, somos bonitos, olha que rua tão maravilhosa a crescer, os nomes ajoelhados lá em cima a quererem-nos dentro, e nós pessoas a aceitar, o coração a bater à sombra, a esmurra-la mesmo, feliz cavalgada, transeuntes não, pessoas, a querer saber sem querer, a ser assim porque sim, sem histórias de tarde e cedo de sede, será que isto não vai passar, as crianças rápidas e um anúncio de saber por onde havemos de ir, é por ali, só pode ser por ali, os velhos estão contentes, as suas margens coloridas, os olhos tranquilos lá atrás, isto existe tudo.

Wednesday, February 27, 2008

A mãe.

Um dia morrerá a mãe, a quem não beijo a boca, nua no banho a depilar-se com creme em véspera cirúrgica, a mãe a quem chupei as mamas, os dias e as noites, um dia morrerá.
Conheço-te o cheiro e abraço-te tão poucas vezes, não lembro a última, deve ter sido há muito tempo, é triste dizê-lo, quando morreres abraçar-te-ei a carne fria, beijarei os teus lábios gelados, e uma lágrima minha correrá sobre o teu rosto, quente ao dizer-te tudo, uma lágrima minha juntar-se-á a essa neve onde tudo acaba e só o coração lá continuará a chegar, uma lágrima minha e pouco mais será preciso.
O que pensará a mãe do filho, porque não me abraça, não me beija, quando eu sei que me gosta muito, o que pensará a mãe, a mãe de quem eu gosto e debaixo saio desse amor, ainda há pouco uma sombra de tetas, agora luz vinda dos seus dentes para o meu pescoço, agora, vai, com o absurdo de me amares faz dele uma flor, todos os dias teus,
lembra-te de mim é o que quer dizer esta ausência de tocar-te, é a nossa união mãe,
o nosso silêncio a demorar-se nas mãos e nos lábios, o amor que grita lá de longe como um músculo a rasgar-se. Mãe, escureceu de repente, queria ter-te abraçado, ou talvez não, sabia eu desse abraço, sabia eu que era este.


Quando se trata de perder o que se ama é sempre cedo.
Não quero máquina de café, água só de jarro, pode ser necessário lavar a cabeça de alguém,
choro e festas de mão na cara dos filhos nem pensar, destapá-la, fodo a tromba de quem tentar, eu, meu irmão, meu pai, só.

Monday, February 18, 2008

Pescoço

Para onde corres tu que és outro quando corres, cegueira meu querido, pela renda da casa, a casa toda, a grande casa, maior que a cegueira sempre, esfolado de mim e percebendo cada vez mais que só assim, adoeci para a subsistência, não para o conforto, adoeci para inclinar o pescoço na fotografia diária, já corro e fotografo, estou louco, ou pelo menos mais perto de estar, levanto os braços, só não bato no peito porque não gosto de macacadas e depois fico triste de repente, perco elasticidade e mirro, vou para dentro e adormeço, porém, há noites muito acordadas e longas, onde a tristeza se espraia, suja margens e pensa por nós como óleo na água, noites longas, tão longas, quanto o medo do pescoço não esticar amanhã.

Wednesday, January 16, 2008

Puta que os pariu, Pacheco.

Não esteve cá para graças, fornicou e viveu numa capoeira, gostava de meninas novas, para lhes abrir as perninhas, chegaram a ser duas, irmãs, prenhas por ele, as duas, filho da puta que foi um sapo de filhos, enrabado em miúdo, mas não muito dizia, andou por Braga a engatar magalas, preço e broche, acredito sem dificuldade que se dobraria junto de uma portada de Deus para mamar num.
Caralho, claro, vermelho Word agora, incorrigível, editou, enganou, pedinchou, por sandes e vinho escreveu na rua, secretariou, ajudou de letra analfabetos e menos lúcidos, traduziu obras, meteu dedos na cona, ao mesmo tempo acredita-se, uma ordinária tradução fez história, na falta de um dicionário, usou em excesso o caralho de uma cona, só não se fodeu mais porque transpirou na gráfica, a grande testa tem gota.
Um autêntico lagarto, viscoso, maus dentes e nua cegueira, óculos de garrafa toda com o sorriso devasso vezes tudo lá atrás, mesmo velho era menino para lamber este mundo e o outro, ou seja, deitem as freiras com a erva para cima, as pernas dobradas como o arame das molas da roupa e a língua dele a tocar esse piano, cantam as sereias alvi-negras um som muito agudo, cantam, o céu sobre o jardim, nuvens torcidas de espasmos que o velho chupa tudo.
O fim veio de pijama, falava de tudo como se não saísse da cama, porque já não tinha gente nem fechadura por onde espreitar, foram feitas para o corpo delas, e se as houve largas e estreitas, peludas, lençóis e neve, um monstro, a cama familiar levitou, funciona a peidos e esporra-se nas nuvens, para que nunca falte cá em baixo um ordinário, ou outra coisa de inevitável como o amor, para que nunca falte, puta que os pariu, Pacheco.

Sunday, January 13, 2008

Sei lá eu o que é uma aldeia...

Não me empurres, é o vinte e oito sim, fora da hora mas vai, a sobejar como sempre, preferia ir debaixo do sovaco do loiro, fechar os olhos e descer sobre o rio por uma corda, oxalá quando os abrir ainda não tenha desfeito a barba, toma um caramelo, abre a boca, o homem é lindo.
E não as fecha, desajeitadas como a morte, meia perna de meia preta, o resto é um horror dali para cima, Deus deve ter soprado, só assim ali pode ter chegado a luz, aldeia velha de pintelho, muita pedra em volta, pois agora só mija quando lhe chegar o destino,
muito mal me fez aos olhos.
O miúdo já levou à boca três macacos, cuspiu e riscou o casaco da que faz a leitura aos domingos, se esta o descobre na missa com o marcador atiçado é bem capaz de haver uma desgraça, puta, não lembra a ninguém que sejam só quatro letras, lembrou-se o miúdo de ficar por ali.
Bem, se aquele se senta vai haver baixas, a fazer de conta que saem na próxima, a barra é magra mas esconde os olhos, afinal, como se pode esconder o olhar de um gordo mórbido, ao longe o suor é só o que escurece a camisa, se fosse o loiro tenho a sensação que ela não se importaria de lá dormir, encostada àquilo que lhe agrada, estás a ver um Europeu a correr no Egipto, num interstício de rua e deserto, mochila de pele, chapéu americano, colete inglês, e talvez mais uma ou outra descrição absurda sobre aquilo que quando nos agrada nos faz parvos.
Olho para lá como quando vamos de frente e não podemos evitar, entre as coxas um fole, bem articulado e até lhe refrigerava a cona, carnes moles e um buço em cima que ressona antes dos óculos.
O miúdo é mesmo estúpido, entrou por ali dentro com o lápis em riste, o socorro da vista caído da mulher, meias negras nas pernas gordas como um templo, ali vai ele, vende livros em barda, adolescente e mágico por isso mesmo, varre uma punheta e descobre-se uma colegial, assim se substitui uma professora por uma gaja que nos ensina melhor só porque nasceu assim, amanhã não apanho este, já não estou para isto,
cheiro a éter e mobília branca, ponho-lhe umas rodas e vou, asséptico, se eventualmente uma da saúde gostar de mim e as abrir como uma flor ainda respondo, caso contrário, cego-me no quarto.

Sunday, January 6, 2008

Diga lá se não era um milagre...

O que julgarão de mim os cigarros doutor, que nunca mais os levei à boca, criança que se espraia zangada na minha alma, por não ir ao parque de diversões, o que julgarão de mim doutor.
Nunca mais tive pódio depois do amor feito, nem na nuca uma almofada a dirigir o fumo, comi de forno o borrego e não existi depois, foram tantos anos de incêndio doutor, não se torna fácil esta planície verdejante, a paz deste arroz a eclodir no algodão,
transtorna-me, a humidade ausente de fumo, transtorna-me.
Eram manhãs de vinte num corpo de papel a descer da máquina, o maço e o troco em cima do jornal, bom dia senhor Alberto, eu a voar de pacote familiar debaixo do braço no aeroporto, avisam-se todos os passageiros que é proibido…grave.
Sei lá eu se no meio desta história o pulmão me agradece, sei lá eu se respiro melhor, se o paladar melhorou, se o paladar é meu, ou de outro, estava capaz de abrir a caixa torácica daquele gajo para lhe aspirar o veneno, para descobrir a verdade no efeito alheio, que parvoíce, não há mineiro que transporte esse amor para uma radiografia, vem à luz do dia celebrar, apenas, é dura a vida.
Lamento mas não poderei jantar contigo, Artur, nem amanhã, nem tão pouco nos próximos dias, quem sabe nos anos vindouros, quem sabe nunca mais, a não ser que te falhe a cabeça, como eles dizem, só na ala psiquiátrica é permitido fumar, a um louco tudo se permite porque tudo é muito pouco, pode ser que aconteça, Artur, uma sandes de atum e um tomate onde espetar o garfo, pode ser que aconteça, esperarei por ti no corredor, no quarto vinte e três há caldeirada de Peniche, não te enganes na porta, são dois irmãos de mar, o barco ardeu ao largo, como a vida, Artur, tantas vezes nos falha o lado, olha, traz tabaco, eu abro a janela.
Pode ser que aconteça doutor, pode ser que aconteça, eu já a vi mais escura, diga lá se não era um milagre, bem servida de enguias e safio, os dois peixes que mais gosto nela, hum…tenho a sensação que não volto a Peniche doutor, nesta vida já não, eram dois irmãos de mar, o barco ardeu ao largo, desaprendeu de respirar a onda pelo nariz, é dura a vida doutor, já a vi mais clara e oxigenada, diga lá se não era um milagre?