Wednesday, May 27, 2009

Morta

Abriu as pernas e o tempo parou, como se um relógio houvesse, dentro dela, todas as horas íntimas e segundos de sangue gotejando para o átrio das coxas, não me lembro de outra coisa que não isto.
A vida conhece-lhe o cheiro, o chão e os passos, todos os dias do horário, porta atrás de porta, boca que mastiga um funeral de pão, quantas pessoas já fui, quantas matei, de que morreram as que salvei, quantas; as mãos como mães empurrando a água à cara, os filhos descendo o mesmo rio, para mais logo, quando for noite nos braços, as estrelas subirem para a mais absurda das geografias.
E o tempo de te abraçar, onde está?
Marcar o ombro de uma manhã como um livro, eternamente ali, sem fúria, sem o dedo húmido para mais uma página; de que morreu ela tenho eu na língua que engoli.

Wednesday, April 29, 2009

Já não sabemos escrever, talvez nunca sabidos estivemos de escrever, e isso adianta pouco, acrescenta pouco, as letras que nunca tivemos um para o outro, as palavras desconhecidas para nós, a literatura da voz não nos mente, bendita literatura, a da voz.
Odeio a feira popular, deixou de ser popular, por levemente ordinária ou porque não se deixa subir, a montanha de Leste e eu só conheço o sul, simplesmente o sul, cabelos voados de tarde e o mar na boca.
Desculpa, olha para mim os segundos que sou, olha por mim, demora-te e leva-me a casa, não tenho casa, o corpo nunca pagará o empréstimo, pobre corpo, viaja menos.
Sou uma tempestade sem vento, não se define, acontece, dá nos lábios e vai.
Uma voz puta de se foder a si sem dicionário à mão, a melhor sem dicionário à mão, sem doença na cura, sem razão para se emendar.

Friday, March 6, 2009

A morte no lenço e o nariz na vida.

Monday, March 2, 2009

Quando digo que estou vivo emociono-me, há sempre um polegar para mais uma aventura, abro-te o último lábio de hoje e fico a vê-lo fechar-se, no tempo que dura o amor de um lábio, ou a areia de um beijo, muito.

Sunday, February 22, 2009

A vida é uma moedinha de dois.
A verdade está toda cá dentro, equivocada, diluída, desfocada, a possível, talvez a possível esteja toda cá dentro, usa uns aros de metal e uma casca de tangerina, nem sempre há sumo, e quando não há sumo sofre-se, tem a cor dos segundos, dos minutos, a cor do tempo que lhe couber em sorte, veio para dentro como um engano e sobe há boca para escolher um ouvido, o mesmo ouvido sempre, porque a boca também há muito que foi para dentro.
Assim surgem as vozes subterrâneas que ecoam nos canais das flores, uma planície interminável de mão no queixo e dedos nos lábios, uma ave no céu por ser ave, ser ave porque voa no céu e mais nada.

Wednesday, February 11, 2009

Morcego

Quantas vezes na ponta do meu cigarro, amor, ardeste tu, nesse pensamento incandescente em que dançavas de sorriso livre, a tua cara para sempre nesse lugar que a memória criou, eu a guardar-te até ao insuportável, alimentando-te e vestindo-te, água para o banho e pão torrado nos lábios, destorcendo as costas do guarda mamas, soltando da gola o cabelo, eu a cuidar de ti, ainda hoje, vigiando-te de cigarro dentro da minha cabeça.
O verão lá fora, devagar como um morcego de roupa pousado na corda a contar cabeças, quem sabe a ler as cabeças, a mesma janela sem ninguém, todos os dias que lá estivemos, quem sabe a olhar as cabeças, o que são cabeças? Talvez vigias.
Os nossos olhos parvinhos um pelo outro, a criar enxoval dentro dos corações, será que isso existe, claro que existe, anda lá, de olhos parvinhos um pelo outro.
As amêijoas na mesa e eu a gostar da tua mão de concha aberta, um pedacinho de mar na tua boca e eu a emocionar-me porque te sabe bem; O vinho gelado, gosto tanto de te por vinho no copo, o seu efeito em ti perseguido pelo meu, lado a lado nas conversas, aquilo de que gostas em mim, o que gosto em ti, o amor de te abraçar no quarto, os teus ombros ainda vivos na minha boca, como o cão que nunca existiu mas tenho esperança nos maxilares do dia em que o souber.
A noite em que os teus pés fizeram com que me dissesses tão agradável é tê-los nus neste chão de pedras juntas como a tua boca e o meu ouvido.